segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

indignação


Aos 40 anos, mulher experiente, mãe de uma jovem de 22, sabia bem que algo estava errado com aquelas dores no baixo ventre. Cedo demais para serem dores de parto, eram apenas 6 meses e sua Beatriz ainda não estava pronta pra vir pro mundo. Acordou o marido e foram ao hospital público. Desde o ano passado, quando ele perdeu o emprego, perderam o convenio médico. No caminho assustou-se com um sangramento e as dores que se agravavam. Chegaram e ela mal podia mover-se. O marido teve que brigar para que trouxessem uma cadeira de rodas. Houve uma imensa demora pra que fosse atendida.Logo após ultrapassarem uma porta restrita, em que o marido não pôde mais acompanhá-la, a enfermeira, grávida, ordenou rispidamente que deixasse de frescura e fosse ao banheiro vestir o avental. Estavam no chamado Pré- parto. Foi arrastando-se e sozinha, no banheiro, aumentando as dores, gemia, sendo jocosamente imitada por um médico, único homem no local. Angustiada, assustada, temendo pela filha, percebeu que iria nascer ali mesmo e gritou aos berros pedindo ajuda. Nesse instante a criança saiu de seu ventre, ficando presa apenas pelos pés, e pelas mãos protetoras da mãe que assim impediram que ela caísse ao chão frio. Finalmente vieram ao seu encontro, ainda tratando-a com rispidez e sequer avistaram que o bebê havia nascido. Ao ser avisado o médico correu a pegá-lo e a dizer que devia já estar morto pois estava roxinho. Sua pequena Beatriz, corajosamente lutou pela vida por 8 dias na UTI neonatal. Sua mãe acredita que se tivesse sido atendida como deveria, com respeito e dignidade, com profissionais que fossem ao menos humanos, sua filha poderia estar em seus braços.

...

Essa é uma história real. Realizei um trabalho diferente da minha rotina nas últimas semanas. Devido ao aumento significativo da taxa de mortalidade infantil (neonatal), fizemos um estudo revisitando as mães. Extremamente delicado e doloroso faze-las reviver todo esse processo, ainda assim ouvi de muitas que queriam mesmo poder falar para que outras mães não viessem a passar pelo que elas passaram. Claro que nem todos os casos tem alguma relação com falha humana, ou negligencia do serviço público. Mas é absurdamente angustiante e revoltante ouvir relatos como este. E inaceitável que fatos dessa natureza aconteçam impunemente. Aquela enfermeira na história acima estava grávida! Em nenhum instante ela pôde se colocar no lugar daquela gestante? Ninguém se imagina ou imagina uma pessoa amada naquela mesma situação? Se imaginasse teria feito a mesma coisa? O que diferencia um e outro? Por que a minha dor seria maior ou mais importante que a dor do outro?? O que foi capaz de tornar criaturas tão indiferentes e desumanas, num lugar carente de qualquer pequeno olhar, qualquer mínimo calor humano?

Um comentário:

Camilo Vannuchi disse...

Ai, Carla, como é duro encontrar em todo canto histórias como esta, de desatenção e desprezo, normalmente pelos mais fracos. E como é difícil saber que tudo isso persiste em um país onde ainda falta tanto para que os direitos humanos (reprodutivos, sexuais, econômicos, culturais...) sejam de fato respeitados.
O que ela quer da gente, você sabe, é coragem.
Estou ansioso para ver esse tal livro que, um dia, você ainda vai nos oferecer. Vou encarar o post anterior como uma promessa.
E continuo por aqui, visitando você de vez em quando. Um beijo.

"Coração mistura amores. Tudo cabe."