terça-feira, 3 de novembro de 2009

retrato

Entrei na UTI naquela manhã atendendo à solicitação de um médico. Um paciente, que chamarei aqui de João, 28 anos, sem parentes próximos, necessitava de atendimento psicológico. Natural de Ipatinga, Minas Gerais, estava trabalhando para uma empreiteira local em uma indústria paulista. Morava a 4 meses em um alojamento e tentava juntar algum dinheiro para mandar aos pais, já idosos. Num belo domingo de sol alguns colegas do serviço o convidaram para ir à uma pequena cachoeira para se divertir e refrescar. Imitando tantos outros, subiu em uma pedra e pulou, fazendo uma pirueta no ar. Lesionou a coluna cervical, sofreu afogamento até que o resgatassem da água. Havia voltado à consciência na véspera, depois de 10 dias em coma. Atendi o João ficando sempre muito próxima para conseguir ouvi-lo, apenas conseguia sussurar. Durante 4 dias estive com ele, continente à sua dor e angústia. Seu quadro era muito grave. Não recebia visitas, apenas um de seus colegas veio dar um alô. Toda sua família era de Minas, sem condições financeiras para vir. Muitas vezes segurei a sua mão, nos momentos em que chorava e confessava seu medo diante de tudo aquilo. Sempre que contava sobre sua terra, esboçava um sorriso. No quarto dia, logo ao chegar, ele sorriu e disse que havia tido um sonho muito bom, que para ele parecia real. Sonhara que havia estado na casa de seus pais.Encontrou sua mãe na cozinha preparando o almoço e seu pai cuidando da roça. Percorreu toda a casa, abraçou seus pais, sem que eles percebessem e acordou sentindo-se mais leve.Havia uma grande riqueza de detalhes que serei incapaz de reproduzir Eu disse a ele, que acreditasse no seu sonho, que talvez de algum modo ele realmente tenha estado ali. Falamos em despedida, e embora uma lágrima tenha rolado em sua face, era visível a sua surpreendente serenidade. Fez um pequeno balanço de sua vida. Ao sair, e já estava na porta, ele me chamou. Voltei para o leito, ele pegou na minha mão, sorriu e disse: obrigado. Eu sabia que ele despedia-se também de mim, que havia sido sua família na frieza daquela UTI. Sorri e as únicas palavras necessárias foram: fique em paz.

Ao retornar na manhã seguinte, como eu já imaginava, soube que ele tinha morrido durante a noite, serenamente.



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"Coração mistura amores. Tudo cabe."